sexta-feira, 7 de março de 2008

Uma sombra na janela

Naqueles dias ele andava precisando de verdades ou, então, ao menos de novas mentiras. Ela buscava algo além das próprias dúvidas, mesmo que não houvesse nenhuma certeza à espera. Nessa noite, ele pensou que não heveria outra noite tão escura e desorientada. Mas ela sorriu, pois também pela sombra se pode conhecer a posição do sol. Quando ele a viu, o sorriso dela fez com que todas as perguntas perdessem o sentido. Nessa noite, a música que ela ouviu nos olhos dele acalentou um pedaço de paraíso. O suficiente pra que ele começasse a falar sobre o que vivera até então. O suficiente para que ela tivesse vontade de ouvir algo que a fizesse esquecer tudo o que passara. Ele contou como preferia as cicatrizes às rugas, as dores aos temores, os prazeres às antecipações e a vida à espera. Ela esqueceu de como zombara do tempo e sofrera cada um dos duros golpes chamados traição, desprezo, desamor, tédio, costume, solidão e esquecimento. Ele a convidou para dançar e falou das tantas vezes em que dançara sem par. Ela cantou aos ouvidos dele, mesmo sabendo que ele nada escutava, tamanho o encanto que ela causava. Naquela noite, havia enormes silêncios e enormes vazios, mas havia também promessas no ar, e expectativa, e ansiedade, e esperança e o desejo de encontro e plenitude com que se sonha sempre. Havia o cheiro da pele e o toque leve dos cabelos. Havia um balanço como o de um navio num mar de sede, suor e saliva. O encontro traçado entre dois corpos. O destino de tudo aquilo que supera sua própria condição e, num efêmero instante, almeja a eternidade, correndo o risco da fantasia, por acreditar, por ousar, por desafiar toda a racionalidade, ou, simplesmente, apenas por querer. Assim, naquela noite, os dois construíram seus próprios labirintos para se perderem, buscando naquele momento de fuga um atalho para a realidade. Numa cidade de muitas janelas e poucas portas, fingiram ser eles mesmos. E enquanto ela sentia o gozo tomando conta e depois indo devagarinho como música que vai se acabando aos poucos, ele a ouvia dizer: faça o que quiser comigo, mas não me deixe. E a essa noite, outras muitas se seguiram. Porém, o tempo os aproximou tanto que eles passaram a confundir seus nomes, papéis, suas idéias, falas e seus cheiros. E como o ego não suporta por muito tempo a morte proposta pela paixão, houve a tentação do amor. Mas tudo veio depressa demais, de surpresa, e as brigas se tornaram rotina amarga, que tira dos olhos a possibilidade de enxergar o outro. E ele pediu perdão por não saber perdoar. E ela pediu um tempo para que o tempo, assim, pudesse passar e não mais de surpresa. E o tempo, então, passou....
Ele esperava que as noites fossem menos frias. Ela esperava que os rostos não lhe trouxessem tantas lembranças. Ele ouvia música em silêncio. Ela cantava sozinha. Ele queria que ela estivesse morta, para que a pudesse beijar sem que os olhos dela fizessem tantas perguntas. Ela queria que ele fosse embora para que pudesse sentir falta dos seus lábios, beijando outros homens. Ele precisava de companhia. Ela queria estar só. Ele queria gritar, queria ser ouvido. Ela queria furar os olhos dele com o olhar. Ele se escondia no escuro. Ela procurava uma luz.Um amor é redentor de outro amor que já foi redentor de outro amor, que também já virou dor. E ela o amava com ódio e paixão, e dor e loucura e desespero. E ele a amava com devoção e entrega, e desejo e calma. Ele caminhava pelo corpo dela . Ela ouvia-o pulsando dentro de si. Ele sentou-se na cama. Ela acendeu um cigarro. Ele foi até à janela. Ela levantou-se à procura de um cinzeiro. Por um segundo, ele estendeu o braço e quase tocou o rosto dela, tentando atravessar milhões de quilômetros. Mas era tarde. Ela já não estava mais no mesmo tempo que ele. Seu tempo já era outro, embora aquele fosse o mesmo quarto vazio, o mesmo sonho perdido, e a mesma noite escura e desorientada em que ela se deitara sozinha ao lado dele com uma sombra na janela.

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