sábado, 15 de março de 2008

Labirintos


Ela me levou por entre várias salas e corredores, olhando assustada para tantas portas, como se também não tivesse a mínima idéia de onde estávamos. Perguntei pela milésima vez para onde ela estava me levando. Ela respondeu como das outras vezes, sem alterar o tom de voz habitual, que queria me mostar uma coisa, me dar algo. Perguntei então se ela tinha certeza de que estávamos no caminho certo. Ela se calou por uns segundos. Por fim respondeu: - Já achei que fosse o caminho certo outras vezes, quando tentei levar outras pessoas. Mas agora tenho certeza de que é. Então a sacaninha já trouxe outros aqui, não pude evitar de pensar. Como se lesse meus pensamentos, tomou meu rosto entre suas mãos e disse: - Amor, você precisa entender que é o Único. Por isso que estamos aqui. Sim, naquele momento eu era o único, mas e antes? Não tive tempo de dizer mais nada, porque ela me puxou, decidida, por uma entrada em forma de arco. A sala era toda de espelhos, teto, chão, paredes. Sensação terrível e sufocante de me ver refletido repetidamente no infinito. Mas ela não estava em nenhum reflexo. Quando contei a ela dos espelhos, ela me olhou sem compreender: - Que espelhos? A sala estava completamente vazia, a não ser por uma caixa, uma pequena caixa com aspecto velho, como se tivesse sido chutada muitas vezes, sendo jogada de sala em sala daquele labirinto imenso. Ela pegou a caixa e voltamos ao corredor. - O que tem aqui dentro eu já quis dar pra alguns. Mas acho que você é o Único que pode ter. Nessa hora eu já sabia de tudo. Já sabia que estava sonhando, e que aquele labirinto de salas em que nos perdemos eram as entranhas dela. Já sabia o que tinha na caixa. Quis dizer mil coisas, beijá-la, tê-la segura entre meus braços, mas quando tentei me aproximar, acordei. Ficamos juntos mais alguns anos. Terminou de uma forma bem natural, as vidas seguem rumos diferentes. A caixa deve estar lá em casa, dentro de alguma gaveta. Junto com fotos, presentes, sonhos, e talvez algumas outras caixas.

sexta-feira, 14 de março de 2008


A gente escreve a partir de uma necessidade de comunicação e comunhão com os demais,
para denunciar o que dói e compartilhar o que dá alegria.
A gente escreve contra a própria solidão e a dos outros.
A gente supõe que a literatura transmite conhecimento e atua sobre a linguagem e a conduta de quem a recebe; que ajuda a nos conhecermos para nos salvarmos juntos.


*Eduardo Galeano*

sexta-feira, 7 de março de 2008

Uma sombra na janela

Naqueles dias ele andava precisando de verdades ou, então, ao menos de novas mentiras. Ela buscava algo além das próprias dúvidas, mesmo que não houvesse nenhuma certeza à espera. Nessa noite, ele pensou que não heveria outra noite tão escura e desorientada. Mas ela sorriu, pois também pela sombra se pode conhecer a posição do sol. Quando ele a viu, o sorriso dela fez com que todas as perguntas perdessem o sentido. Nessa noite, a música que ela ouviu nos olhos dele acalentou um pedaço de paraíso. O suficiente pra que ele começasse a falar sobre o que vivera até então. O suficiente para que ela tivesse vontade de ouvir algo que a fizesse esquecer tudo o que passara. Ele contou como preferia as cicatrizes às rugas, as dores aos temores, os prazeres às antecipações e a vida à espera. Ela esqueceu de como zombara do tempo e sofrera cada um dos duros golpes chamados traição, desprezo, desamor, tédio, costume, solidão e esquecimento. Ele a convidou para dançar e falou das tantas vezes em que dançara sem par. Ela cantou aos ouvidos dele, mesmo sabendo que ele nada escutava, tamanho o encanto que ela causava. Naquela noite, havia enormes silêncios e enormes vazios, mas havia também promessas no ar, e expectativa, e ansiedade, e esperança e o desejo de encontro e plenitude com que se sonha sempre. Havia o cheiro da pele e o toque leve dos cabelos. Havia um balanço como o de um navio num mar de sede, suor e saliva. O encontro traçado entre dois corpos. O destino de tudo aquilo que supera sua própria condição e, num efêmero instante, almeja a eternidade, correndo o risco da fantasia, por acreditar, por ousar, por desafiar toda a racionalidade, ou, simplesmente, apenas por querer. Assim, naquela noite, os dois construíram seus próprios labirintos para se perderem, buscando naquele momento de fuga um atalho para a realidade. Numa cidade de muitas janelas e poucas portas, fingiram ser eles mesmos. E enquanto ela sentia o gozo tomando conta e depois indo devagarinho como música que vai se acabando aos poucos, ele a ouvia dizer: faça o que quiser comigo, mas não me deixe. E a essa noite, outras muitas se seguiram. Porém, o tempo os aproximou tanto que eles passaram a confundir seus nomes, papéis, suas idéias, falas e seus cheiros. E como o ego não suporta por muito tempo a morte proposta pela paixão, houve a tentação do amor. Mas tudo veio depressa demais, de surpresa, e as brigas se tornaram rotina amarga, que tira dos olhos a possibilidade de enxergar o outro. E ele pediu perdão por não saber perdoar. E ela pediu um tempo para que o tempo, assim, pudesse passar e não mais de surpresa. E o tempo, então, passou....
Ele esperava que as noites fossem menos frias. Ela esperava que os rostos não lhe trouxessem tantas lembranças. Ele ouvia música em silêncio. Ela cantava sozinha. Ele queria que ela estivesse morta, para que a pudesse beijar sem que os olhos dela fizessem tantas perguntas. Ela queria que ele fosse embora para que pudesse sentir falta dos seus lábios, beijando outros homens. Ele precisava de companhia. Ela queria estar só. Ele queria gritar, queria ser ouvido. Ela queria furar os olhos dele com o olhar. Ele se escondia no escuro. Ela procurava uma luz.Um amor é redentor de outro amor que já foi redentor de outro amor, que também já virou dor. E ela o amava com ódio e paixão, e dor e loucura e desespero. E ele a amava com devoção e entrega, e desejo e calma. Ele caminhava pelo corpo dela . Ela ouvia-o pulsando dentro de si. Ele sentou-se na cama. Ela acendeu um cigarro. Ele foi até à janela. Ela levantou-se à procura de um cinzeiro. Por um segundo, ele estendeu o braço e quase tocou o rosto dela, tentando atravessar milhões de quilômetros. Mas era tarde. Ela já não estava mais no mesmo tempo que ele. Seu tempo já era outro, embora aquele fosse o mesmo quarto vazio, o mesmo sonho perdido, e a mesma noite escura e desorientada em que ela se deitara sozinha ao lado dele com uma sombra na janela.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Muito pra dizer, nada pra dizer - II.


show do BOB DYLAN hoje e amanhã em sp, dia 08 no rio. e eu não vou. =/

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nada de útil pra postar.


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HOJE SÓ QUERO FICAR JUNTINHO DO MEU NAMORADO OUVINDO BOB DYLAN A TARDE INTEIRA.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Quem saberá a cura do meu coração senão eu?


a solidão é meu cigarro.
um vinho, um travo amargo e morro.


*Zeca Baleiro*


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a ilusão é o veneno
corrói pouco a pouco
os ossos
a vontade
a coragem
dias vazios
escorrem
entre os dedos
somem como nuvens
dias cinzas
dias malditos
sonhos envelhecendo
por trás das grades
alma escorre
entre os dedos
desce pelo ralo
seu sorriso rusga de sol
por trás dos pensamentos
sufocando dia a dia
lodo de emoções
melhor não ser
do que ser só metade
do que quero
seu sorriso
suave
me faz querer
acender mais um cigarro
ter vontade de esperar
um pouco mais
esperar a onda
que lave a ilusão
e o veneno
desembaçando
olhares
deixando a realidade
nova
seu sorriso brilha
por trás de tudo
fecho os olhos
respiro fundo
esperamos juntos o sol nascer.

Ressaca e García Márquez


uma dessas manhãs sonolentas cheias de calor. você acorda com um gosto ruim na boca e toda suada. manhãs de ressaca.
numa dessas, virei pro lado - em uma inútil tentativa de achar posição que diminuísse os coices furiosos que um rinoceronte suicida e/ou possuído pelo demônio dava dentro da minha pobre cabeça - e dei de cara com ele.
a partir daí, minha manhã nojenta de ressaca se transforma num quase conto de García Márquez - saca aquelas paradinhas de realismo fantástico e coisa e tal?
porque em vez de levantar cambaleante, ligar o ventilador murmurando "meu mundo por um ar condicionado" na língua ininteligível dos seres de ressaca matinal, tirar os sapatos que invariavelmente continuariam ainda no meu pé, e puxar o cobertor pra me aconchegar no quase divino chão gelado, soltando um enorme "AHHH" de alívio seguido de um enorme "AAAHHH MERDA" causado pela pata dianteira do meu amigo rinoceronte suicida e/ou possuído pelo demônio...
eu, ilogicamente, sem sequer pensar sobre o fato, abracei o ser que dormia do meu lado. e isso foi bom.
se alguém aí já teve uma manhã de ressaca, sabe que a última coisa da qual se tem necessidade é um "ser dormindo ao seu lado em sua cama de solteiro".
pois foi isso.
numa manhã de ressaca recebi um sinal apoteótico induzido pelo vinho e entendi o segredo do universo.
o Amor é;
acordar com um gosto ruim na boca e toda suada.
virar e dar de cara com Ele.
reparar o quanto ele tem carinha deliciosa de bebê indefeso quando dorme.
reparar que existe um copo de água pra você do lado da cama.
reparar que ainda tem o último cigarro na carteira de lucky strike.
meio amassado, verdade, mas sua cara também está, pode apostar.
você então suspira num quase gozo de felicidade, tira as remelas, bebe a água, acende o cigarro e imagina que pra tudo ser perfeito só faltava uma mangueira ligando sua pobre bexiga cheia até o vaso sanitário. mas aí nem García Márquez, minha filha.
claro que você faz tudo isso no lastimável estado "zumbi apoplético da manhã", inclusive apagar o cigarro em um lugar que tanto pode ser um cinzeiro quanto a capa daquele seu cd raro dos Beatles.
mas o que importa é que você percebe que o tal do rinoceronte suicida e/ou possuído pelo demônio se casou e teve 42 filhos, todos suicidas e/ou possuídos pelo demônio, todos alegres e contentes de morarem em sua cabeça, pois é oca e tem mais espaço pra eles brincarem.
porém, continuando seu momento de revelações divinas, você também percebe que sua dor de cabeça dos infernos é facilmente diminuída na presença do cheiro de suor doce, sexo e cigarro que ele tem de manhã cedo.
Amor.
quem diria que é tão simples?
depois disso ele semi acordou, nos comunicamos na língua dos zumbis apopléticos de ressaca matinal, e decidimos que a manhã estava linda demais, e que a única forma inteligente de aproveitá-la era dormindo por mais umas duas semanas.
e dormimos mesmo.

sábado, 1 de março de 2008

Sutra do Girassol


"... pobre flor morta? quando foi que você esqueceu que era uma flor? quando foi que você olhou para sua pele e resolveu que era uma suja e impotente locomotiva velha? o espectro da locomotiva? a sombra e vulto de uma outrora poderosa locomotiva americana louca?
você nunca foi uma locomotiva, Girassol, você é um Girassol!
e você, Locomotiva, você é uma Locomotiva, não se esqueça!
e assim agarrei o duro esqueleto do girassol e o finquei a meu lado como um cetro, e faço meu sermão para minha alma, e também para a alma de Jack e para quem mais quiser me escutar.
- nós não somos nossa pele de sujeira, nós não somos nossa horrorosa locomotiva sem imagem empoeirada e arrebentada, por dentro somos todos girassóis maravilhosos, nós somos abençoados por nosso próprio sêmen & dourados corpos pêludos e nus da realização crescendo dentro dos loucos girassóis negros e formais ao pôr do sol, espreitados por nossos olhos à sombra da louca locomotiva do cais na visão do poente de latas e colinas de Frisco sentados ao anoitecer."


Trecho do "Sutra do Girassol" , Allen Gisnberg, Berkeley, 1955.