segunda-feira, 28 de abril de 2008

Eu tenho o tempo todo do mundo. Eu tenho o mundo afora.


_________ Domingo.



merda de despertador. acordei com esse pi pi pi infernal, desliguei e me preparei pra voltar pros meus lençóis quentes e os sonhos luminosos e tudo aquilo que eu só alcanço dormindo, longe de tudo. mas a lembrança de que é finalmente domingo e que eu não vejo meu junkie há 4 dias me faz rastejar da cama com um sorriso e um gosto doce na boca. depois de comer qualquer coisa pro meu estômago parar de reclamar - mas ele nunca pára - , caminho pro ponto de ônibus e vejo as esperanças de que hoje seja um dia no mínimo empolgante descreverem traços coloridos na minha frente, eu sorrio, mas talvez isso seja só sono. o ônibus demora o infinito vezes 4, eu quero pelamordedeus um cigarro, um cigarro, um cigarro. carros passam espalhando água sem dó nem piedade, velhinhas indefesas correm desesperadas, eu rio de tudo porque acho engraçado o jeito frenético com que o mundo me alcança, me inunda, me cansa, mas continuamos sempre em frente, e eu sempre rio. e ninguém ri comigo, mas eu já não me importo. dentro do ônibus sinto pingos de chuva no meu rosto e no meu casaco preto. minha cara inchada de sono. meu suco gástrico corroendo minhas pobres paredes estômacais, mas let's go, o dia nasce cheio de possíveis expectativas, talvez eu morra ou descubra a iluminação daqui a três horas, então eu não reclamo, não reclamo. como sempre, começo a pensar nas milhões de coisas que deveria estar fazendo da minha vida. depois penso nas milhões de coisas que eu queria estar fazendo, e ah! ah deus - eu não faço nem um nem outro, eu ando nessa corda bamba, eu não sei de nada. mas peraí. se eu não faço nem o que eu devia, e nem o que eu quero... mas que merda que eu tô fazendo? essa é a questão, boy, A Questão. pego meu on the road e recomeço a ler de onde parei, o livro gasto de tanto ser relido. serve pra me lembrar que a vida pode ser mais. claro, eles só se fodiam a maior parte do tempo, mas e daí? eles viajaram, eles viram com os próprios olhos, eles sentiram e atravessaram universos, e aprenderam juntos que a maior viagem de todas é pra dentro do seu próprio espírito. eles VIVERAM, viveram, e não vegetaram que nem nós, formiguinhas, formiguinhas, caminhando sempre em frente, em frente, em frente, pra onde? - sabe, a vida é muito curta, a vida é um segundo, cara. nossas vidas são um mili mini segundinho nesse universo fodidamente grande. e eu não tô afim de desperdiçar meu tempo fazendo coisas que eu não quero. não importa por cima do que eu tenha que passar. pois é... e cadê a diversão??? pra onde vamos hoje à noite??? onde nosso barco vai estacionar amanhã??? o que faremos no próximo segundo??? querer, querer mais, estamos sempre querendo e nada nunca é suficiente. eles nos apontam a luz no fim do túnel, mas alguém mais reparou que a luz sempre parece estar a mesma distância, por mais que se ande? desculpe, baby, mas tenho que dizer. nós fomos enganados, mas você ja sabia, anyway. formiguinhas, é confortável pertencer ao formigueiro. formiguinhas, sempre pra frente, pra frente, pra onde porra? aposto que você não sabe. então... vai nessa. eu prefiro ficar aqui sentada, com meu cigarro, meu mp3, meu livro de poesia e toda a minha imensa burrice de uma jovem de 18 anos. caralho, 18 anos! e eu me sinto velha, velha, velha. 18 anos e eu não fiz nada. desço no ponto minutos depois, minha cabeça explodindo de pensamentos inúteis, pra variar. frio frio frio frio. cigarro, isqueiro, movimentos mecânicos, prazer, sensação quase orgasmática de se sentir quente com a fumaça. bato na porta dele, ele atende, demonstramos nossa saudade do nosso jeito estranho, beijo ele com força, na verdade tenho sempre que me controlar pra não enfiar ele todo na boca e mastigar até ele ser realmente meu. digerido. hum... acendemos cigarros, vamos pra rua, pra chuva, pro dia maluco que nos espera. e a tarde corre, escorre, transcorre naquele ritmo violento e lunático de sempre, nossos diálogos nem sempre compreensíveis, nossas frustações tão parecidas e tão diferentes sendo divididas, e namorá-lo é correr de olhos vendados sobre um caminho cheio de precipícios. ou seja, a coisa mais deliciosa que já me aconteceu. e de repente começa, aquela sintonia, aquela eletricidade, e somos só nós, e o resto do mundo se esvai, e só existe a voz dele e o ruído que minha cabeça faz tentando absorver toda a loucura que ele me passa. e enquanto ele fala meu coração bate, bate, bate, não, não tem nada haver com aquelas coisas lindas e melosas de sempre, meu coração realmente bate muito mais rápido, tentando acompanhar... mas a mente dele é inalcançável. meu deus, como eu quero ele, como eu quero aprender essa loucura, esse despreendimento, essa capacidade de se bastar, de absorver a vida em goles gigantes, de ser e só. simplesmente estar do lado dele abriu as portas que eu tinha fechado na mente, as portas da minha percepção, ele, ele, ele. meu namorado é lisérgico. mas eu tomo cuidado. porque fogo ilumina tanto quanto queima. e mesmo sem querer, nossas vidas estão cheias de bolas de neve despencando montanhas, e os dois tentam escapar de um buraco negro, mas nos agarramos e só afundamos mais. e isso é tão terrivelmente perfeito. eu quero esse mergulho nas águas escuras do coração dele, da mente dele, indecifrável e profunda. e isso me atrai e me assusta. pessoas chegam e nos tiram de nossa combustão, simbiose espiritual, mas as pessoas que estão perto dele respiram a mesma resina lisérgica que ele, e tudo se completa, num elo estranho entre pessoas que mal se conhecem e já se conhecem tanto. talvez seja efeito de droga e só, mas pra mim isso é efeito da nossa vontade de contato, vocês nos negam contato, vocês se negam contato, vocês vivem de superfície, e eu preciso de profundidade, de pessoas, de alma, de suor e de palavras que venham do fundo da mente, não da boca! e então vamos atrás da diversão, e sentamos no velho círculo de pessoas, e a erva passa pela mão de todos, e todos entram em sintonia, sim, sim, sim! as cores criam vida, as pessoas criam significado real, a música entra e faz cócegas em mim... eu olho pra todos os lados e o mundo me invade por todos os sentidos, deus, deus, deus. sim, o que mais eu preciso, o universo sou eu, eu sou o universo. eu parei com isso, eu tô parando, eu juro que vou parar. mas eu quero fluir, eu quero esquecer de mim, eu quero não ser mais, e ao mesmo tempo ser tudo e ser nada. espero a grande mudança cósmica que nunca vem, e pra falar sinceramente, a droga não me faz mais tão bem como antigamente. that's the way, nevermind. preciso achar outra coisa. de repente passo do momento perfeito pra uma bad trip fodida. a imobilidade da bad trip, ahhh, fazia tempo que não sentia isso. parece sempre que se você mover um mínimo músculo que seja, o mundo vai cair sobre tua cabeça e dilacerar você todinho. eu ouço as vozes das pessoas distantes, me perco num mundo estranho em que não existe tempo, dá vontade de rir, de chorar, de vômitar, de morrer, meu coração tum tum tuM tuM TUM TUM cada vez mais desesperado. aí começa a velha história, você sabe o que tá acontecendo e tenta enganar tua própria cabeça, calma calma, pense em coisas boas, coisas boas... olho pro lado e ele tá ali, com aquela expressão que ele tem ao me olhar, como se lesse minha mente e já soubesse de tudo que eu sinto, e quero, e preciso. ele lê meus olhos sempre. ele sempre sabe. e isso é incrivelmente maravilhoso e totalmente irritante. então num segundo quero morrer, e no segundo seguinte estou enroscada com língua, dentes, braços, corpo, alma, tudo, com medo, tesão, loucura, numa urgência deseperada, sentindo esse cara que é a minha última esperança, minha única salvação possível, e ao mesmo tempo o motivo de eu sempre preferir ficar perdida. as pessoas somem, mas quem se importa, eu percebo vagamente que estamos no quarto, e é toda aquela intensidade de sempre, explosão, explosão, e eu deixo ele me penetrar com força, como se isso pudesse me salvar, me purificar me libertar, e eu grito alto alto alto, espantando meus demônios, ou talvez implorando por mais deles. e o suor dele me limpa da sujeira toda do mundo, e o peso do corpo dele me alivia o peso das culpas que tenho que carregar por essa bosta de vida sem sentido. e de repente estamos falando besteiras doces, eu me sinto completamente bem de novo, e tudo recomeça num círculo sem fim... aí o cigarro. aí, perceber que já é tarde, porra, é muito tarde. e como uma iluminação divina, percebo que vai ser sempre assim. um puxando o outro pro lado escuro. sempre esquecendo horários e o mundo lá fora, sempre indo dormir mandando o resto do mundo se foder, e acordar com as conseqüências se espremendo pra te alcançar por debaixo da porta trancada, desconsiderando tua ressaca. porque o mundo não pára, nunca pára. olho pra ele e percebo que ele também sabe disso. nos encaixamos tão perfeitamente que somos totalmente errados um pro outro. mas que se dane. pego uma camiseta dele e vou tomar banho, frio frio frio frio. depois é a vez dele, aí fica tudo quente. ele toca e canta pra mim, como sempre, e eu percebo que eu realmente não quero mais nada da vida, e isso é tão perigoso, tão perigoso que me dói. mandamos tudo a merda e vamos dormir. nos enroscamos com nosso frio, nosso medo, nosso... amor... lá fora dizem que estamos errados. (que futuro isso pode ter?) eu não me importo. recomeçamos com a mesma intensidade, e incrivelmente isso fica melhor a cada dia. portas da percepção, portas da percepção, novas sensações, eu já disse que meu namorado é lisérgico? durmo respirando o cheiro dele, abraçada, absorvendo as linhas de energia que saltam dele pra me curar de tudo. percebo vagamente que ele está me contando uma historinha pra dormir, algo parecido com uma versão pornográfica de chapeuzinho vermelho. eu rio, e a última coisa que penso antes de apagar completamente é em como a vida é fodidamente boa, pra variar. meu namorado é lisérgico.





_____________Segunda.



acordo cedo cedo cedo cedo, cedo demais pra raciocinar. afinal, tenho que ir pra casa, não avisei nada desde ontem de manhã, já prevejo a merda que vou ouvir quando chegar em casa, sim, sim, sim. mas foda-se . é, não da pra ser junkie way of life com papai e mamãe dedicados esperando em casa. e olha que eu até tento. ele não me deixa voltar a dormir. e visto o casaco gigante dele, e lá vamos os dois, olhos injetados de sono, cigarros acesos, pernas tremendo, - mas que porra, tá parecendo são paulo! - caralho, cinco da manhã, cinco da manhã! filosofamos vagamente sobre os rumos para quais a vida nos levará pelos próximos dias, sorrimos e nos olhamos, nos beijamos o máximo que o sono permite, meu ônibus chega rápido demais, e ele fica tão fofo com carinha de sono, eu entro no ônibus e recebo olhares estranhos, não me admira, eu realmente devo estar ótima, com meu all star metade calçado metade não, mini saia, camiseta dele e o casaco gigantesco cobrindo tudo, menos minha cara que pode ser de sono ou de chapada, e meu cabelo violentamente armado. fora que devo estar cheirando a cigarro e sexo. huum. sento e pego o on the road. antes de abrir, percebo duas coisas. uma, que no fundo gosto de receber esses olhares de "olha lá a drogada." e depois, que no fundo minha existência é um eterno lamentar por eu não ser tão drogada quanto meus heróis foram, os personagens dos livros que leio, os "personagens" dos pôsteres na minha parede. eu envelheço a cada manhã de ressaca dessas. eu tô passando mal, o estômago, minha menstruação atrasada, e a ressaca. o pior tipo de ressaca. a ressaca moral. porque ultimamente não tenho feito nada direito. porque quando vivo como querem eu me sinto enjoada, perdendo tempo e enganando a mim mesma. porque quando vivo como eu quero me sinto enjoada, fazendo os outros perderem tempo comigo, e enganando todo mundo. eu queria que todo mundo mandasse eu me foder, e a maioria realmente manda; mas ainda tem você, você que sempre fica do meu lado, não importa quanto eu banque o dean moriarty. meu irmão de alma, e engolindo meu orgulho, meu pai. o fato dele acreditar em mim quando nem eu mesma acredito é o que fode com tudo. você não tem direito de refrear meu instinto auto destrutivo! olho pro on the road de novo e lembro que o jack kerouac quando envelheceu virou um reacionário, renegou o movimento beatnik que ele ajudou a criar, virou alcóolatra, nunca deixou de morar com a mãe, e morreu vendo seriados de tv americanos e votando no nixon. lembrar disso me enjoa ainda mais. desço no ponto, acendo o último cigarro (eu começei a fumar lucky strike por causa de pulp fiction). me sinto num filme europeu sobre drogados de londres, debaixo de chuva, com essas roupas e essa cara, tentando proteger meu último cigarro do destino de se molhar e não servir mais ao maravilhoso intento de me causar câncer. quem me dera eu estivesse mesmo em londres, indo prum squat com meus outros amigos viciados. quem me dera que eu estivesse mesmo chapada. chego na minha rua, a chuva piora, eu sem fôlego. sento na calçada, me molho toda, mas que se foda, não importa, eu preciso respirar, fumar, vômitar, morrer. me sinto como se tivesse passado dois dias tomando tequila pura e depois enfiado a cabeça num sino de igreja badalando. não que eu já tenha feito isso. mas a sensação deve ser essa. rastejo até em casa, planejando não acordar ninguém, tomar banho e ir pra aula, talvez roubar um trocado pra comprar cigarro. ah, mas terrivelmente meu pai me conhece bem demais, passou a corrente na porta, minha chave é inútil, e lá vou eu bater à porta, inconscientemente me encolhendo... o ruído de passos - meu pai. - me desperta pro fato de que eu não tô num filme sobre drogados de londres. "ouço" o falatório do meu progenitor, usando minha técnica adquirida através de anos de esporros, aliás, quem não faz isso? é só pensar em outra coisa. nesse momento eu tava com a cabeça numa frase do caio fernando abreu num conto, "quanto mais eu conheço minha família, mas entendo kafka." ele volta pro sono dele. eu tomo leite com nescau pra acalmar minhas paredes corroídas, quando foi que eu bebi um copo de soda cáustica?? tiro toda a roupa, me enxugo mais ou menos, eu quase não consigo pensar, recoloco só o casaco dele, eu tô passando mal , tô com sono, mando tudo a merda, fecho a porta, deito na cama. não tô afim de fazer nada hoje, porque eu não tô bem, e vou dormir até 4 da tarde. antes de apagar, sinto o cheiro dele no casaco e penso que eu não faço idéia de quantas loucuras me esperam pra acontecer essa semana. afinal de contas, a vida é boa. o problema todo é exatamente que a vida é fodidamente boa.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

A verdade do meu mundo


Eu te direi: meu mundo é feito de bolhas de sabão.
Você dirá: Endoideceu novamente.
Eu responderei: Completamente.
E você me pocará;
virarei mil gotas de chuva.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Do sofrimento por antecipação

e é verdade.
aí eu faço o de sempre, afogo minhas angústias em bebida, digo pra todo mundo no pub (Bernie, Monna, Billie, Candy, Stevie e Dee) que esse negócio de morar em Hackney é temporário, não esperem me ver por aqui por muito tempo. não senhor. tenho grandes planos, parceiro. e sim, tenho ido ao banheiro com frequência, mas geralmente pra ingerir em vez de excretar. ainda tô mandando o produto pra dentro do nariz quando percebo a triste verdade. cocaína me entedia, entedia todos nós. somos um bando de viados de saco cheio, envolvidos com uma rotina que odiamos, em uma cidade que odiamos, fingindo estar no centro do universo, nos detonando com drogas de quinta categoria pra destruir essa sensação de que a vida real está acontecendo em algum outro lugar, conscientes de que estamos apenas alimentando a paranóia e o desencanto, mas ainda assim apáticos demais pra conseguir parar. porque, infelizmente, não existe nada interessante capaz de nos dar um motivo pra parar.


trecho de Pornô, Irvine Welsh.

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não é meu estado de espírito agora. mas serve pra me lembrar que nenhuma felicidade dura muito e que em breve volto pra mesma merda de sempre.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Efeito corrosivo do tédio

pode até ser que eu esteja maluca.
doida, desvairada, boba, apaixonada, louca, desesperada.
precipitada.
mas, quer saber?
é exatamente esse precipício que eu quero.







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O único critério para o Amor
é a Liberdade. (do adesivo colado na capa do meu caderno de poesia.)
são dez da manhã, eu não devia estar aqui. ultimamente, eu faço de tudo, menos "o que devia estar fazendo".
não me sinto capaz de nada além de pensar nele e me rastejar pelos cantos, me perguntando porque ultimamente a vida anda tão sem sentido e tediosa,
e porque necessito estar com ele todos os segundos da minha existência.
quem acha que o amor é lindo com certeza nunca amou.

Canção


o peso do mundo é o amor.
sob o fardo da solidão,
sob o fardo da insatisfação.
o peso.
o peso que carregamos é o amor.
quem poderia negá-lo?
em sonhos nos toca
o corpo,
em pensamentos constrói
um milagre,
na imaginação
aflige-se
até tornar-se
humano
- sai do coração
ardendo de pureza
pois o fardo da vida
é o amor,
mas nós carregamos o peso
cansados
e assim temos que descansar
nos braços do amor
finalmente
temos que descançar nos braços
do amor.
nenhum descanso sem amor
nenhum sono sem sonhos
de amor
- quer esteja louco ou frio,
obcecado por anjos
ou por máquinas,
o último desejo é o amor
- não pode ser negado
não pode ser contido
quando negado:
o peso é demasiado.
- deve dar-se sem nada de volta
assim como o pensamento
é dado na solidão
em toda a excelência do seu excesso.
os corpos quentes
brilham juntos
na escuridão,
a mão se move
para o centro da carne,
a pele treme
na felicidade
e a alma sobe
feliz até o olho
- sim, sim,
é isso que eu queria,
eu sempre quis,
eu sempre quis
voltar
ao corpo em que nasci.


*Allen Ginsberg*

terça-feira, 1 de abril de 2008

No quarto escuro com "A"

Deitado em sua cama, o garoto olhava o teto. Estava no escuro. E, como lá fora, a lua estava cheia, pequenos pingos da sua claridade conseguiam romper a barreira da persiana, metendo-se pelas frestas. O menino podia, então, distinguir o teto na escuridão. Mas, enquanto o olhava, o que ele queria mesmo era achar uma palavra para definir o tal sentimento. E por que a presença dele agora, de repente, era tão grande? O que havia feito finalmente acreditar? E tão rápido e subitamente? De onde vinha a tal fé? Se pelo menos pudesse enxergar Aquele que o inspirara. Não em formas tristes e cheias de sangue. Não em estátuas pesadas ou ocas. Mas, assim... bem ali, ao seu lado.Cansado do quarto, resolveu transpor os limites do teto. Imaginou-se no telhado e, num pulinho, alcançava as estrelas. Encontraria Ele lá? E como não pôde achá-lo pela Via Láctea, sentou-se em um dos cometas. E de cima olhou para a Terra, azul, envolta numa névoa branca, quase transparente. E ela girava e girava. Devagar, quase imperceptível. Constatar aquele movimento não era o mesmo que vê-lo? E se, em vez de Ele, fosse Ela. E não ela a mulher, a feminina, mas como ela A força, A criadora, A que dá vida e protege. A, o primeiro de todos, ao qual os outros seguem. O garoto, então, se imaginou no centro da Terra, numa fonte. Onde a água nascia? Como podia surgir tudo aquilo assim, do nada? "A" havia de exixtir, sim! Ele sentia. Ele mesmo era prova disso. E de um outro salto foi para dentro de si próprio. Seu sangue, suas veias... Seus órgãos, sua carne. E se movimentavam também! Se coração pulsava sem que ele lhe ordenasse. A cada dia cresciam pêlos pelo seu corpo. Sua voz começava a engrossar. Constatar esses movimentos não seria o mesmo que vê-la? E, aborrecido com todo aquele devaneio, resolveu pular da cama, de verdade, e abrir a janela. E viu a lua logo ali, prenha que só. As estrelas cada qual em seu canto. Ooops, uma passou lá no alto, riscando o céu. Uma estrela cadente! Mais uma prova, talvez? Ou não. A astronomia tinha melhores explicações. A ciência, tantas outras. E quem lhe explicaria o sentimento? Que não viesse dos homens vestidos de preto, nem das mulheres cobertas dos pés à cabeça, menos ainda dos que falavam na televisão com o microfone na mão. Queria uma explicação sua, que descobrisse por si mesmo. Óbvia e palpável. O garoto respirou fundo o cheiro da noite. Um vaga-lume passou suspenso no ar. Acendia, apagava. Como a luz pequena de um pensamento difícil. E, de repente, ele não sabia mais o que era sonho e o que era realidade. Se estava dormindo ou acordado. E em meio a essa confusão, num piscar de olhos, o menino sentiu A, tão perto, ali a seu lado. Usufruindo com ele aquele momento. Mostrando-se toda, sem que se deixasse ver. E uma voz mais velha, dentro de si, sussurou: "É assim mesmo, num instante a certeza é maior, noutro, menor... mas ela sempre vem se a gente precisa, pede e A aceita."